Terra raiana e de antigos contrabandistas, outrora ancorada no empreendimento mineiro de São Domingos, Santana de Cambas guarda uma história de resistência ímpar que talvez explique o forte espírito comunitário que ali se sente. Em nome dos que vivem da terra, deu-se por encerrada há dias uma novena para pedir chuva aos céus. Também é o povo que cuida com afeto da sua igreja paroquial, na falta de um padre em exclusividade. Para breve, está a abertura do primeiro restaurante da aldeia. E todos esperam que seja um bom isco para as visitas de Espanha, agora mais frequentes desde a inauguração da ponte que liga o Pomarão a El Granado.
No limite do concelho de Mértola com a fronteira espanhola, Santana de Cambas já foi terra de mineiros, quando a jazida de São Domingos ainda estava a laborar em pleno. E de contrabandistas, quando não restavam muitas mais alternativas de sobrevivência na raia ao longo desses anos miseráveis das ditaduras de Franco e Salazar. Já viu chegar e partir gente, sobretudo a partir de meados dos anos 60, período de grande boom migratório, e ser-lhe interposta a barragem do Chança no caminho para Espanha. Em 2009, mais de 20 anos passados sobre essa construção, que absorveu os trilhos calcorreados pelos vizinhos e primos ibéricos, para lá e para cá, eis que uma nova ligação, a ponte internacional do Baixo Guadiana, encurtou para 12 quilómetros o caminho entre Pomarão e El Granado. As expetativas de maior dinamismo económico eram muitas mas o que contam as gentes no largo Dr. Serrão Martins é que as visitas de nuestros hermanos estão a passar ao lado de Santana de Cambas.
Manuel José dos Santos, um septuagenário de olhar doce e porte elegante, faz as honras da casa junto à fachada do Centro de Convívio Cultural e Recreativo, já vazio depois da hora de ponta pós-almoço. Diz ele, que chegou a tentar o contrabando “mas não quis saber dessa vida”, que a aldeia não tem o que os visitantes procuram: “Chegam aqui, não há nada, não há aqui uma casa onde façam comida, e então vão para Moreanes, para os Corvos. Aqui só temos o café e aquela mercearia além”.
Chamar mercearia ao estabelecimento de António Gomes, de 70 anos, é no mínimo redutor. Fruta, frigideiras, trelas para cães, meias, pacotes de batatas fritas e pastilhas elásticas compõem o cenário em que se movimenta há 38 anos, sempre atrás daquele balcão e com um olho de esguelha na taberna, que funciona atrás de si. Uma porta aberta em cada lado do mesmo quarteirão. “É mercearia, é taberna, também tenho roupas… é uma miscelânea. E nestas terras pequenas, se não for assim, não nos governamos, e mesmo assim governamo-nos mal”, desabafa, lembrando a perda de poder de compra, o predomínio dos velhos na balança demográfica e as escassas oportunidades de trabalho para os novos. “Dois lares, dois pedreiros de construção civil e a Câmara de Mértola. Não há aqui mais nada”, acrescenta. E confirma o desvio dos espanhóis, em busca de sítios “onde comer bem”. “Vão ali a Mértola e aos Corvos e os portugueses vão à procura de gasolina e gás; outras coisas já não trazem porque já não dá resultado. A mercearia já é cá mais barata”.
Mas apesar dos dias difíceis, Santana de Cambas ainda é um sítio onde se vai levando a vida com alguma calma e harmonia, remata o comerciante: “Só duas pessoas é que não têm casa própria. Não se pode dizer que se vive bem, porque sabemos bem que em todo o lado é a mesma miséria, mas é uma terra onde mais ou menos está tudo composto, tudo equilibrado, e não se olha ao que os outros têm”.
À porta de casa, a desembocar para o largo principal da aldeia, Rosa Maria, de 68 anos, é da mesma opinião. Por isso não se arrepende de ter deixado para trás a cidade de Haia, na Holanda, onde esteve emigrada 33 anos, a trabalhar “oito horas por dia, numa fábrica e depois em limpezas nuns escritórios”. “Gosto muito de estar aqui. Gosto do convívio. Há muitas mulheres, juntamo--nos aqui todas, fazemos costura, quando alguma faz anos, fazemos uma festa na Casa do Povo”, descreve, satisfeita. Com as vizinhas espanholas já se estabeleceu um novo ritual desde que foi inaugurada a nova ponte, há três anos. Em cada Dia da Mulher, há festa feminina. Ora do lado de cá, ora do lado de lá da ribeira do Chança. “Este ano vieram elas cá, no ano que vem vai a gente lá. Antes da ponte não havia contactos, porque era difícil. Para ir a Espanha, tínhamos que ir por Serpa ou pelo Algarve. Agora está tudo à mão”.
Rosa Maria e Manuel dos Santos são os nossos pontos de contacto com o “grupo da novena”. Em poucos minutos, rodeia-nos uma agremiação de mulheres de roupas coloridas, viçosas na sua madurez. Conversamos sob as arcadas do ponto dos Correios, onde se alinham as caixas de apartado.
Maria Júlia Carrasco, de 73 anos, é a porta-voz. Em poucas horas, cumprir-se-á a sexta noite de prece pela chuva, que é “o elemento da natureza de que mais precisamos”, explica. O grupo, maioritariamente feminino, concentra-se à porta da igreja e depois segue para um ponto diferente da aldeia em cada serão. “Não sou seareira, não tenho gados, mas tenho pena. Fui um dia destes ao Pomarão, passei ali à estrada e vi uns borreguinhos andarem com a boquinha em cima da terra sem uma ervinha para comer”, esclarece Maria Júlia. A compaixão é unânime e a fé também, pelo que não foi difícil juntar à volta de duas dezenas de habitantes para as peregrinações noturnas que terminavam dali a três dias. Um encerramento com direito à presença do pároco de Mértola, que só costuma aparecer para uma missa mensal porque tem a seu cargo um concelho inteiro. “Coitado, ele faz o que pode. É uma pessoa já com mais de 60 anos”, salvaguarda Ana Maria Pereira, de 79 anos, que guarda e mostra às visitas a igreja paroquial, templo que deverá datar do século XVII, como se fosse a sua própria casa.
Descendo à terra, fala-se de um novo negócio, um restaurante que está prestes a abrir num espaço de que é proprietária Maria Júlia Carrasco, com exploração a cargo de familiares próximos. “Neste momento, parece que há margem para negócio, por causa das visitas dos espanhóis. Moreanes tem dois restaurantes, a Mina tem dois ou três, Corvos também tem um. Por que é que Santana não há de ter o seu?”, remata.
Luís dos Reis
Presidente da Junta de Freguesia de Santana de Cambas
Em termos demográficos, como se caracteriza Santana de Cambas, tendo em conta o contexto global do concelho de Mértola?
Embora se verifique um decréscimo populacional na freguesia, não é um decréscimo tão elevado quanto noutras do concelho. Temos atualmente 800 habitantes. E é óbvio que, dentro das possibilidades da junta de freguesia tudo tem sido feito para que se possa viver condignamente numa freguesia que é “amiga” das pessoas.
Como se tem vindo a recompor a freguesia depois do fecho das minas de São Domingos, no final da década de 60, que dava trabalho a grande maioria da população?
No final da década de 60, com o encerramento das minas de São Domingos e com a diminuição da atividade piscatória, é evidente que muita população teve que ir para outras paragens e todos aqueles que ficaram se foram adaptando a novas atividades.
Quais são as principais fontes de riqueza e emprego para quem vive aqui atualmente?
Atualmente a construção civil, a agricultura, a pecuária, os produtos tradicionais como o mel, queijo e pão, o turismo rural e algum comércio são as principais fontes de riqueza da nossa freguesia.
Santana de Cambas tem uma antiga relação com Espanha, nomeadamente através do contrabando.
Como se carateriza essa relação hoje, com a existência da nova ponte sobre o rio Chança?
Com a construção da nova ponte transfronteiriça e, após termos tomado conta dos destinos da freguesia, temos intensificado as relações luso-espanholas, com os mais variados intercâmbios culturais nas áreas do lazer, do desporto e de parcerias em diferentes atividades.
Quais são os momentos altos da vida social e cultural da freguesia e qual o vigor do movimento associativo aqui?
É, sem dúvida, a freguesia onde o movimento associativo é mais intenso; quase todas as localidades da freguesia têm as suas festas de verão. Existem três instituições particulares de solidariedade social (a Casa do Povo de Santana de Cambas, o Centro de Apoio a Idosos de Moreanes e o Centro Social de Montes Altos) que contribuem, quer para a criação de emprego, quer para o bem-estar da população mais idosa. Para os mais jovens, existe o Centro Educativo de Santana de Cambas que inclui as valências do pré-escolar e 1.º ciclo. A própria junta realiza ao longo do ano, em parceria com a população da freguesia, inúmeras atividades de âmbito cultural, lúdico e desportivo, como por exemplo passeios de BTT, passeios pedestres, comemorações festivas, cinema itinerante, passeios no Guadiana, entre outras. A junta de freguesia apoia também as atividades realizadas pelas associações locais. Realizam-se ainda nesta freguesia três grandes eventos culturais, sendo eles a Feira da Aldeia de Santana de Cambas, a Feira Agropecuária Transfronteiriça de Vale do Poço e o Festival do Peixe do Rio, que terá lugar nos próximos dias 24 e 25 do presente mês, e que convido, desde já, todos os leitores a visitar.
Objetos e testemunhos
do contrabando num museu
Inaugurado em 2009, o Museu do Contrabando regista em objetos e testemunhos escritos e filmados o que foi este fenómeno de sobrevivência na zona raiana, durante mais de três décadas e especialmente intenso nos três anos (1936-1939) da Guerra Civil de Espanha. Nas vitrinas expõem-se latas de café, um exemplar do clássico moinho de zinco e latão, alpercatas e sapatos de borracha, muito procurados pelos mineiros de São Domingos, a saca de serapilheira, que servia de mochila para transportar as cargas clandestinas, ou ainda a temida farda da Guarda Fiscal. Instalado bem no centro da localidade, no largo onde se encontram a igreja e o centro de convívio, o núcleo museológico “é pequenino mas muito visitado por gente de fora”, garante, orgulhoso, Manuel José dos Santos (na foto), um dos muitos que por esses dias tentou a sua sorte a caminho de Espanha. “Noites e noites andando, para depois perder a carga antes de chegar ao destino. Vinha para trás e não ganhava nada. Desisti, não quis saber dessa vida”, conta. O museu, que se quer em permanente construção, alberga ainda um mapa no qual vão sendo assinalados, mediante as informações que forem chegando, todos os trilhos do contrabando na raia ibérica.
Um “complexo” de solidariedade
social em Montes Altos
Entre as três instituições particulares de solidariedade social da freguesia, o Centro Social de Montes Altos foi a que ganhou maior notoriedade nacional, pelo volte face que provocou nesta pequena povoação, onde se contavam apenas 11 pessoas na fase de arranque do equipamento, em 1993. A partir do velho edifício da escola primária, criou-se primeiro um centro de convívio, depois o centro de dia e o apoio domiciliário e, mais tarde, a valência de lar de terceira idade, tendo entretanto também sido criadas três empresas de inserção (construção civil, higiene habitacional e lavandaria). Segundo dados do sítio eletrónico da instituição, são 37 os seus atuais colaboradores e 94 os utentes que beneficiam dos seus serviços. Por lá passou o Presidente da República, em 2006, no âmbito do Roteiro para a Inclusão, e ficou surpreendido com o que viu, quatro anos depois de o fundador da instituição, António Diogo Sotero, ter sido distinguido com o Prémio Nacional Nunes Corrêa Verdades de Faria, pelo seu trabalho no apoio a idosos desprotegidos.