Era uma noite de lua meio cheia e meio apagada por um céu vivo de estrelas que com sua licença lhe tiravam o brilho. Era uma noite já meia noite e dali se observava o meio da aldeia ao longe, com a torre da igreja ainda iluminada desde as festas e mais duas ou três casas ainda despertas de gente. Pouco mais se distinguia do casario além das luzes difusas alumiando em largos espaços as poucas ruas de Santana de Cambas, desde o poço no poente até ao cemitério a nascente, lá bem no fundo de tudo, para lá da aldeia. Soava bem perto o canto vibrante dos grilos e das cigarras nos campos destapados, contrastando com um suave burburinho de gente ainda no adro a essa hora, e que ecoava ondulante e disperso por todo o vale. Para nós era silêncio e calma e contemplação. Era a beleza das coisas simples. Era uma noite de mais um dia quente de Verão. E seria no fim um dia que guardaríamos na memória para todo o sempre.
Éramos miúdos armados em homens, nos seus verdes anos de vida. Éramos quatro miúdos com muito tempo nas mãos e mais imaginação ainda, e lembrámo-nos nesse dia de ir passear pela noite quente, o que não era, aliás, nenhuma ideia primeira. Éramos miúdos mas já muito rodados nessas coisas de caminhar pela noite. Era normal nos dias de festa das povoações em redor fazermo-nos a pé pelos caminhos, cantando e assobiando pelo alto de Santana, seguindo pela margem da estrada para Moreanes ou até pelo campo, quando íamos para as festas dos Bens ou dos Salgueiros, rasgando a roupa pelos arames farpados e chegando aos bailes sempre com ar de maratonistas. Mas íamos a todas. E a pé.
Voltando a essa noite e ao destino do nosso passeio: a ideia dessa vez nem me lembro ao certo de quem ou de onde partiu, mas veio puxada numa nossa conversa de miúdos feitos homens, ali no poço Carvalho, onde passávamos grande parte do tempo das nossas noites na aldeia, e onde estávamos sentados, pouco tempo antes de tudo o que se passou depois. O relógio da igreja marcou a hora com suas doze badaladas e marcou também o compasso ritmado dos nossos corações e o início da nossa caminhada. Tinhamos deixado o poço atrás de nós e a escola mal iluminada estava agora à nossa esquerda, quieta e muda, como quase toda a aldeia. Virámos depois à direita e seguimos junto ao muro que ainda era de pedra, em direcção à travessa do Moleiro, que ainda nem tinha esse nome. Estávamos estranhamente calados, não sei se por falta de conversa ou se por respeito ao silêncio e escuridão que se fazia sentir pelo caminho e nos contagiava a mudez. Uns cães vadios, cheirando-lhes a movimento, vieram ao nosso encontro e acompanharam-nos por dois ou três passos, voltando depois a deitar-se aborrecidos no meio da rua onde estavam. Ainda o silêncio. Chegando à rua grande continuámos pela direita, deixando logo depois o casario e descendo em passo largo até ao cemitério. Ao longe algumas luzes de Espanha picotavam o horizonte entre a bruma e o céu luminoso. Era mais céu do que terra, mais estrelas que candeias. Pedaços de água brilhavam entre os cerros despidos por onde passa a ribeira, e morcegos bailavam em transe sobre as luzes do caminho.
Foi então que, aqui e ali, um ligeiro resfolhar se foi ouvindo pela noite e nos fez sentir que não estávamos ali sozinhos. Sentimos no momento que alguém, ou algo, estava a acompanhar-nos no nosso passeio. Ouviu-se então um ruído ainda mais intenso e perturbador, vindo lá do alto, à nossa esquerda, como se alguma coisa se dirigisse em grande velocidade na nossa direcção. Instantes depois, de novo o silêncio. Absoluto. Nada. Estarrecemos de imediato e, meio assustados, trocámos entre nós um olhar incrédulo. Quem andará aí? Lembro-me que nem sequer comentámos mais nada entre nós. Assim como parámos, logo retomámos nosso andar apressado e também nossa conversa sobre as miúdas giras que estavam no baile do outro dia e também sobre aquela música do Fabião que não nos sai da cabeça. Foi como se não fosse nada. A verdade é que estávamos juntos, unidos por uma verdadeira irmandade de já muitos anos, e isso bastava para nos sentirmos contagiados com a coragem invisível de cada um de nós. Além disso, pensámos para nós mesmos, estamos em Santana, que raios poderá acontecer aqui? Nada. Deste mundo, nada. E estávamos tão certos disso que não demos nenhuma importância aos primeiros sinais do que nos iria acontecer. Acabámos afinal por ter toda a razão: o que nos aconteceu depois não foi mesmo nada deste mundo.
(continua...)
1 comentário:
bom dia gente da minha aldeia.
pedro isso nao se faz,estava eu aqui toda entusiasmada a ler essa coisa e agora fikei em suspance,ate ao proximo capitolo,kero saber kem era o morto ke vos seguiu anda la despacha te ja vou trabalhar a pensar nisso,mais logo venho ver o resto do capitolo beijokas
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